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Blog - Romeu di Sessa

Foto do escritorRomeu di Sessa

O Mecanismo, Segunda temporada

Achei a segunda temporada bem melhor que a primeira, tanto de roteiro quanto de direção. As subtramas estão mais bem elaboradas e acho que acharam um tom mais equilibrado pra loucura do personagem do Selton Mello, que em mais um trabalho confirma que é um dos melhores atores brasileiros da atualidade. O elenco é quase todo muito bom, mas o Selton e o Enrique Diaz arrebentam a boca do balão.

Tinha uma coisa muito ruim, que pra mim comprometeu a primeira temporada, que é o "clímax" do personagem do Selton Mello sendo o que seria uma "grande epifania" que é quando ele descobre que "sim! Existe um mecanismo!" Oh! Bom, que a corrupção no Brasil é sistêmica isso todos sabemos desde pequenos. Aí fizeram lá uma cena dele montando aquele painel, como se fosse Uma Mente Brilhante sacando algo novo e revolucionário, mas a forma não disfarçou a fraqueza do conteúdo, do personagem "descobrindo" o que já deveria saber fazia tempos. Na segunda temporada a mesma situação foi substituída por outro drive muito melhor, o lance das cartas. E aí ficou uma coisa muito mais instigante. Primeiro porque foi mais fundo não só na mera constatação de que "tudo é uma armação", mas entendendo e explicando o "mecanismo" de fato. Segundo porque foi uma forma de mostrar a loucura e a obsessão dele de uma forma muito impactante. E terceiro que visualmente também resolveu muito melhor.

Acho que essa série, junto com outras como 3% e O Negócio, consagram a maturidade em séries brasileiras "off-Globo".

De conteúdo tem algumas coisas que eu estranhei. Eu acho que obra de ficção não é reportagem, acho que ela tem que se apegar aos fatos só na medida de quanto isso ajuda na dramaturgia. Mas acho que isso tem limites e ao mesmo tempo acho também que ninguém poderá nunca estar autorizado a definir qual é essa medida, o quanto o roteirista precisa mesmo se ater aos fatos e ser fiel a eles. Acho que a régua pra isso quem tem que dar é o bom senso do roteirista e da produção. Quem cria alguma obra de ficção baseado em fatos reais tem mesmo que ter liberdade para interpretá-los e descrevê-los como for mais instigante, mais cativante, sempre a serviço do entretenimento. De novo: não é reportagem. E de mais a mais, ninguém está impedido de contar a mesma história de outro ângulo, até porque toda história tem infinitos ângulos a serem abordados.

Tem um caso emblemático disso na cinematografia brasileira, que foi no O Que É Isso Companheiro, que teve aquela situação da personagem da Cláudia Abreu transar com o personagem do Milton Gonçalves, que fazia um segurança do embaixador. Houve uma grita do pessoal mais ligado àqueles movimentos guerrilheiros da época, dizendo que isso nunca aconteceu. Mas e daí? Não é nada impossível. Não dá pra dizer que militantes que estavam dispostos a matar ou morrer pela causa não se disporiam a transar com alguém para obter alguma informação importante. E o filme nem ao menos é "a história de uma mulher que se prostituía pra combater o Regime Militar" (e ainda que fosse), aquilo é uma subtrama, uma solução achada para fechar uma parte da história, que não faz diferença se era 25 ou 100% verdadeira.

Mas como disse, isso tem limites. Esse caso do Companheiro, pro meu julgamento, não derrubou esse limite, mas outros podem achar que sim e ambos estaremos certos. Isto posto, tem duas situações que me chamaram atenção nesse sentido n'O Mecanismo.

A primeira foi a prisão do Youssef no Paraguai, quando na verdade ele foi preso no Maranhão. Não é só uma questão de "rigidez geográfica", mas é que colocaram ele vendendo cigarros, e incluíram ali a morte de um agente da PF que, até onde eu sei, nunca existiu. Mas ok, pode ter sido melhor pra trama, afinal este é um caso policial sem tiros, quase sem "perseguição de carro", e o público quer ver mais ação do que tem na confecção de um PowePoint (por sinal, ótima e correta a cena onde mostram o fatídico e ridículo PowerPoint do Dallagnol, incluindo o desdém da colega).

A outra coisa, e essa eu acho que passou bastante do tal limite, foi colocar como se o impeachment da Dilma tivesse se dado por uma armação entre Temer, Aécio e Cunha (e acho que Gilmar Mendes também). Isso obviamente não se deu assim e pra poder contar a história desse jeito a série foi obrigada a desconsiderar e fingir que não existiu um dos episódios mais importantes e fatais daquele momento, que foram as maiores manifestações públicas que este país já teve, que simplesmente não aparecem, nem são citadas na obra.

O que pega nisso não é nem o fato deles terem contado a história deste jeito, mas o fato deste jeito estar completamente alinhado com um viés político partidário. Acho que aí a trama se perde porque veste uma camisa que não tinha que vestir, e que teve muita habilidade e não vestir em outras situações. Por exemplo, a forma como é mostrada a Lava-Jato e seus integrantes, e incluo aí o Moro, não foi composta alinhada com a narrativa cochinha, pelo contrário. Há crítica embutida naquelas ações (por exemplo, a do grampo da Dilma e Lula vazado, ou o próprio PowerPoint), há personagens da própria equipe defendendo Lula e seu legado, há contradição entre os personagens e isso tudo acho muito saudável. E não só porque melhora a trama, mas também porque não toma partido. Colocar o impeachment da Dilma dando um copy&paste da cartilha petista, foi tomar um partido que a série não precisava e nem deveria tomar. Até porque essa versão é completamente falaz. Nem tem muito sentido o Aécio ter feito parte da suposta engendração pra derrubar Dilma (ele não teria o que lucrar com isso) e também Cunha e Temer podiam tramar isso quanto quisessem: sem as pedaladas, sem a incompetência, sem o embuste eleitoral, sem a anuência do STF e principalmente, sem a roubalheira petista escancarada pela própria Lava-Jato e sem a multidão na rua, eles podiam armar isso o quanto quisessem, que nunca haveria nem golpe nem impeachment algum. É fato que tanto Cunha quanto, principalmente Temer, lucraram muito com isso, mas daí a descrever como se fossem eles que tivessem tramado, é pura viagem. E uma viagem alinhada com um partido. Daí o equívoco.

E mais: é preciso também lembrar que se o congresso não aprovasse, nada aconteceria. E não é crível dizer que o congresso foi comprado para aprovar. O que aconteceu foi justo o oposto: o PT formou sua base aliada comprando as putas de rua do congresso, quando a grana acabou (por causa da Lava-Jato), acabou a "base aliada", que só existia financiada. E aí viraram as costas. ESSA me parecia ser uma trama melhor contada na série e que também renderia bem dramaturgicamente falando. Porque no fim, de fato, quem deu "um golpe" no PT e na Dilma, foi a Lava-Jato, porque secou a fonte da corrupção e a "base" virou vapor.

Isso sem contar que os supostos artífices se deram bem mal, né? Aécio foi "esperto" (no mau sentido da palavra) e garantiu seu foro privilegiado por pelo menos 4 anos como mero deputado; Temer já foi preso, saiu mas obviamente vai voltar e Cunha tá em cana, deixou de existir politicamente.

Enfim, acho que foi um caminho adotado não muito bom, parece até que o Padilha tava a fim de ficar de bem com os Mortadelas, ou quem sabe só com seu amigo Wagner Moura e mandou essa linha, a única flagrantemente partidária, numa série que brilhava pelo distanciamento crítico. Não precisava.

Mas quem sou eu pra definir o limite...

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