Eis uma lenda que eu inventei de como foi criado o roteiro de Bacurau.
Era meados dos anos 80. Num D.A. de alguma faculdade pública vários jovens estavam fazendo conjecturas sobre o perverso mundo em que viviam. Eles eram de esquerda. Tinham naquela semana assistido na TV ao filme "Open Season", sobre três veteranos do Vietnã que sequestravam pessoas para soltá-las no mato e caçá-las. Concluíram que aquilo era um fiel e preciso retrato do "American Way of Life".
Durante o papo sacaram que aquela situação poderia ser trazida para o Brasil: Um grupo de americanos malvados (um pleonasmo) pagariam para participar de um jogo onde viriam para uma cidadezinha do (na visão dos americanos) desprezível nordeste brasileiro para caçar e matar pessoas. Na visão gringa eles não eram nem pessoas mesmo, eram só brasileiros, então tudo bem.
Foram se animando, anotando ideias num papel e a sinopse foi ganhando corpo. Como eles eram nordestinos, intuíram que aqui os americanos teriam apoio de habitantes do (como Henfil batizara) "Sul Maravilha", aquela parte do país onde existiam pessoas más, porque queriam ser americanos. Decidiram inclusive que esses perversos daqui seriam os primeiros a morrer, pra aprenderem a ser entreguistas vassalos lambe-botas dos gringos.
Outro malvado seria um político, populista, de direita, que era quem lucrava com a vinda dos americanos e assim seria o penúltimo a morrer, deixando o derradeiro assassinato ser o de um americano, para que ninguém deixasse de entender a real "mensagem" da película. Assim a vilania ficaria a cargo da corja do mundo: políticos de direita, paulistas e americanos. Eles não se sentiam preconceituosos, apenas justos (e igualitários).
O filme seria alegórico, como costumavam ser os filmes de esquerda na época. Sendo assim, uma das atitudes dos americanos malvados seria matar uma criança, mas que na verdade simbolizaria um mico-leão-dourado, ela inclusive usaria uma máscara deste bicho na hora da morte, como numa alegoria aos males que os americanos causam à nossa natureza. Outra atitude malévola seria um deles tacar fogo numa palhoça com um isqueiro Zippo, como eles faziam no Vietnã, do jeitinho que foi mostrado em Apocalypse Now.
Como os vilões eles já tinham, faltavam só os heróis. Mas isso era fácil: os heróis seriam os brasileiros! Entenda-se por "brasileiros" nordestinos do sertão. Os paulistas e cariocas não são brasileiros, inclusive no filme seriam classificados como "italianos e alemães ricos e quase brancos".
Nossos heróis seriam mulheres e homens dignos e destemidos. Suas armas seriam antigas, verdadeiras peças de museu, mas (como no Vietnã) isso não seria empecilho para eles vencerem os invasores americanos, mesmo que estes estivessem também usando armas ultrapassadas (para americanos). Até um disco voador dos anos 50 eles teriam! Os brasileiros venceriam também por uma característica nobre que os estadonudenses, competitivos como manda o capitalismo, não teriam entre si: a união do povo, que juntava gente de várias categorias, de motoristas de carros-pipa a professores e doutores, todos unidos e solidários contra aquela invasão imperialista.
Talvez inspirados num slogan da Semp-Toshiba da época, concluíram que nossos bandidos seriam melhores que os bandidos dos outros e assim elegeram como defensores armados daquele povo alguém que fosse uma combinação de Lampião e Madame Satã, misturando unhas pintadas com cabeças cortadas, tudo tendo como pano de fundo o marrom desbotado do semiárido.
Ao final, os bandidos americanos cairiam todos mortos, fazendo assim com que aqueles jovens do D.A., mesmo sendo de esquerda, confessassem sem querer que pra eles também bandido bom é bandido morto. E que se o bandido ainda por cima for americano, pode ser assassinado com requintes de crueldade.
Adoraram o que criaram. Festejaram. Curtiram. Estavam felizes e orgulhosos com o feito e com o efeito positivo que aquele filme alegórico certamente causaria no engajamento da população que o assistisse, talvez o filme entrasse para história como o estopim de uma revolução libertadora. E voltaram à aula, finalmente honrando o dinheiro público gasto com eles.
O tempo passou e todos que formavam aquele grupo cresceram, amadureceram e esqueceram aquele tonto folhetim de esquerda que tinham escrito. Todos menos um, que guardou os alfarrábios e um dia filmou a ideia, tal qual foi escrita, não esquecendo nem ao menos de, conforme planejado à época, incluir músicas do Geraldo Vandré na trilha. Adicionou também o uso de algum tipo de alucinógeno pelos personagens, algo que fazia mais parte cultura daquele D.A. do que da cultura do sertão nordestino. Apenas adaptou o filme para os dias de hoje incluindo algumas tecnologias de agora e, tá bom vai, tirou a máscara de mico-leão-dourado da cara do moleque um pouquinho antes dele ser morto. Creu que as pessoas entenderiam a alegoria do mesmo jeito.
E assim Kleber Mendonça fez Bacurau.
Mas isso é só uma lenda.
Durante boa parte do filme você não sabe o que está vendo. Acha que vai ser realismo fantástico (coisa que só Dias Gomes sabia fazer, como ninguém), acha que quem sabe vai ser um novo "Brasil ano 2000" (coisa que só Walter Lima sabia fazer, como ninguém), depois acha que vai ser um filme lento e longo (coisa que só Luiz Fernando Carvalho está autorizado a realizar, por ser o único que sabe fazer, como ninguém), sem história certa a ser contada. Até que uma hora você entende que se trata de um velho sonho de esquerda, de se vingar de americanos, matando todos! Arrancando a mão e deixando sangrar até morrer, ou espatifando o cérebro, ou torturando e enterrando vivo. Tudo bem, são americanos, eles merecem. (aposto uma garrafa de catuaba que o Kleber é fã do Tarantino.)
Kleber é muito bom fazendo filme experimental. Acho que ele é um dos poucos que sabe fazer isso, trazendo estranheza, profundidade e reflexão quando investe nas suas brisas autorais, como fez no Vinil Verde e no Som ao Redor. Kleber tentando contar uma história fica nu, não consegue deixar de ser juvenil (não jovial), porque não consegue deixar de fazer com que a história sirva menos ao filme e mais à sua própria agenda ideológica, como fez no Aquarius e agora em Bacurau.
Que ele volte pra seara onde manda bem, como ninguém.
Ah. Caguei pro prêmio em Cannes. Com prêmio ou sem prêmio continua sendo só um filme tolo, maniqueísta e dispensável. Enfadonho como qualquer outro panfleto político (de esquerda ou de direita).
Tem alguns planos bem legais, por exemplo o da gringa transando. O mais da direção achei bem burocrática, abaixo do padrão do Kleber.
Tem ótimas locações, a melhor é o dique abandonado. E (tome alegoria...) os bandidos de lá se entocam onde a água falta. Mas aí funciona bem, por ser menos óbvia.
Chocante a cena do gringo tomando um tiro no meio das tampa. Muito bem feito e bem filmado também, surpreendeu na hora certa (mas é um pouco chocante demais pro meu estômago frágil)
Tem um lance que seria legal se fosse em outro filme. Por exemplo, estamos falando de gente mais humilde. Quando aparece o disco voador dá a impressão que quem o avistou pode ficar confuso, sem saber o que é aquilo. Ao contrário, mais pra frente ele próprio revela firme que é um drone em forma de disco voador de filme antigo. Isso SERIA legal se:
a) O filme já não tivesse dado uns tiros a esmo, tipo, saindo água dos caixões. Então o disco poderia ser uma maluquice qualquer do autor.
b) Se os personagens já não estivessem "fadados" a serem heróis. Sacar isso pra quem já estava contendo a invasão americana era o de menos.
O que eu achei mais legal no filme foi o "som ao redor". O som é uma espécie de driver do filme, porque muita coisa vem através de carros de som, microfones, megafones, mensagens de voz de Whatsapp, et cetera. E isso é bem interessante mesmo e bem sertão nordestino que, mesmo com tecnologias mais modernas, ainda faz uso deste tipo de comunicação mais antiga, nem por isso menos eficiente.
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