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Blog - Romeu di Sessa

Foto do escritorRomeu di Sessa

Democracia em Vertigem

Vou falar em "bullet points" tentando com isso ser mais breve (não consegui...). E se alguém quiser, "peça vistas" em algum ponto, que eu explico melhor.

● O doc é bem feito, no geral.

● É altamente partidário, mas não vejo problemas nisso, pelo contrário, o seu principal mérito é simplesmente existir, mérito igual ao que terá quando for lançado o doc do MBL sobre o mesmo tema. Desde que o partidarismo seja explícito (como é, no caso da Petra) não vejo problema nenhum, acho é bom. Todo mundo tem o direito de falar o que pensa e contar a história do jeito que viu. (Quem assistiu "Você vai ver o que você vai ver"?)

● Insuportável a narração dela, com aquela voz chorosa o tempo todo, como se estivéssemos num pós-holocausto, que nunca existiu, ou melhor um holocausto que existiu apenas no seio petista, criado por eles próprios. No "Helena" ela já tinha assumido uma condução assim, mas ali é diferente, por causa do tema e por abordar um membro da família com um destino trágico. Mas mesmo lá essa forma cansava um pouco, parecia querer obrigar a audiência a sofrer com ela por empatia, não pela evolução dos fatos. Neste doc esta conduta ficou sem a parte aceitável, se mantendo como uma lamúria manipuladora só. Com essa narração ela inaugurou uma nova profissão: a de carpideira política.

● Achei bobo e completamente fora de contexto o tempo que foi dedicado a falar dela própria e sua família e isso sendo tratado como tivesse alguma relevância política/histórica no país. O ponto alto dessa falta de noção foi quando ela entrevistou a própria mãe, como se a opinião da mãe dela tivesse mais importância do que a da minha, ou a da tia conservadora dela, ou a do meu vizinho na análise do painel político. Acho que valia mesmo ela passar apenas duas informações: que ela foi criada numa família de esquerda, e que o avô dela é fundador de uma das empreiteiras corruptas, sendo que essas duas informações dava pra passar num parágrafo só, sem prejuízo do resto que o doc aborda.

● Muito legal e enriquece muito o documentário as imagens exclusivas que ela tem de Dilma e Lula, em especial de quando ele estava encastelado, momentos antes de se entregar. Se bem que uma dessas cenas exclusivas, apesar de boa, é um pouco comprometedora, achei. Foi quando ela registra uma conversa do Lula com alguém depois da "decisão" dele virar ministro. E por isso mesmo: Lula descreve o papo que acabara de levar com Dilma como uma "decisão", algo próximo de um "acordo", e não como um convite, que costuma anteceder o ingresso de alguém num ministério. Pelo papo de Lula fica claro que ele não foi convidado a participar do governo: eles combinaram isso. E neste caso, isto é comprometedor.

● Tem uma hora que parece que - ufa! - finalmente algum petista vai fazer uma auto-crítica em relação ao PT. Mas a ilusão dura pouco. Ela até faz a crítica, mas em seguida a relativiza, e transforma o PT em "vítima do sistema", e assim esvazia a ponderação.

● Muito legal o plano, ou melhor, muito legal e apurada a análise que o doc faz do plano onde aparece na rampa Lula, Marisa, Dilma e um Temer constrangido, afastado, tentando caber numa foto onde ele não cabia. Achei isso antológico e emblemático. Ótima sacada, daquelas onde um doc mostra que viu o que ninguém viu.

● No doc tem, pelo menos, duas desonestidades históricas (não dá pra chamar de outro nome), as duas ligadas ao processo de impeachment e sem as quais nem ao menos daria pra fazer o doc com esse viés. Ou seja, o doc, contado da maneira que foi, só foi possível com a inclusão dessas mentiras/distorções ou supressão de fatos. São "esquecimentos", que comprometem substancialmente a narrativa do "golpe".

● A primeira foi quando ela fala do ingresso do pedido de impeachment na câmara e mostra sua autora Janaina Paschoal pagando de maluca, naquela cena patética dela rodando a bandeira do Brasil no alto, e falando de "cobras e lagartos". Nesse ponto eu vou ter que abandonar o "sistema de bullet points" e vou ter que me alongar um pouco (uma pena, tava gostando desse sistema...). Mas preciso fundamentar melhor minha opinião:

Todos os movimentos políticos de âmbito nacional que aconteceram no Brasil desde a República (ou mesmo antes dela) foram oriundos da classe média. Temos movimentos sazonais, regionais e setoriais que surgiram de outras classes, mas os de amplitude nacional, todos surgiram da classe média: abolição da escravatura, a própria Proclamação da República, as Revoluções de 30 e 32 (quem tinha ouro pra doar não era pobre), a derrubada de Getúlio, a Marcha de Deus com a Família Pela Liberdade, os movimentos estudantis de 68 e 77, as Diretas, os Caras Pintadas, enfim, todos esses movimentos - para um lado ou outro do espectro político - surgiram da classe média brasileira. O que é (muito entre aspas) "natural" num país de bases escravocratas, de um farto histórico de hegemonia da zelite, com baixo acesso à educação pelas classes mais pobres, enfim, dá pra entender porque aqui aconteceu da classe média trazer pra si a responsabilidade de promover as mudanças mais significativas que tivemos até hoje em nossa sociedade.

O único movimento de âmbito e impacto nacional que aconteceu na história brasileira que NÃO surgiu na classe média, foi o movimento sindicalista do ABC, onde, por consequência, nasceu o PT, um dos partidos políticos mais importantes da nossa história, senão o mais importante.

A importância do movimento sindicalista, do Lula e do PT é inegavelmente deles próprios, é fruto dos seus valores intrínsecos, e esses valores não dependem de ninguém para existir. No entanto para todo esse movimento, ou mais especificamente para o próprio Partido dos Trabalhadores poder deixar de ser um fenômeno meramente regional ou setorial e alcançar o Brasil inteiro, dependeu enormemente da classe média e do aval que parte dessa classe deu ao Partido, sem o qual seria apenas mais um PCO. De novo: o valor do PT é inalienável dele, é mérito próprio, mas a amplitude que ele teve só foi alcançada graças ao reconhecimento, ao apoio e ao aval que intelectuais de classes pertencentes às elites (intelectuais e financeiras) deram ao PT e seus objetivos originais.

Nesse processo eu fui testemunha ocular e vi muito de perto. De todos os nomes que se alinharam ao PT no seu nascedouro não consigo pensar em nenhum outro que tivesse mais peso e emprestasse mais confiança e credibilidade do que o de Hélio Bicudo, um jurista que transitava com igual desenvoltura em meios acadêmicos, políticos e econômicos em todo o país, gozando de igual respeito em qualquer lugar em que estivesse. O apoio do Bicudo ao PT foi uma outorga que projetou o partido, não só na população em geral mas também promovendo e incentivando o engajamento de outros expoentes da intelligentsia brasileira, formadores de opinião, cuja ausência seria um impeditivo talvez intransponível para que o PT se tornasse o que se tornou.

No entanto no documentário a Petra aparentemente "esqueceu" de mencionar que Hélio Bicudo era co-signatário do pedido de impeachment de Dilma Rousseff. Justo ele... Classifico esse "esquecimento" como fraude histórica, inaceitável e tendenciosa num nível que extrapola em muito o direito de viés ideológico e de partidarismo que um documentarista tem. Foi uma atitude análoga àquelas do Stalin de mandar retocar fotos tirando delas membros que fizeram parte de Revolução, mas por algum motivo passaram a ser tratados como "traidores" daquela revolução.

E vou além: ela deve ter "esquecido" de mencionar Bicudo porque, se o mencionasse, seria impossível fazer a auto-crítica do jeito tímido, contido e pré-arrependido que fez. A simples menção dele no doc daria uma dimensão mais correta do tamanho do desvio de conduta que o PT cometeu. Diria até que é possível se revelar a história do impeachment e da prisão de Lula contando apenas o arco do personagem Hélio Bicudo. Seria um doc bem sincero.

● A outra mentira histórica que o documentário de Petra perpetra (não resisti ao trocadilho infame, desculpem) é achar que é possível contar o impeachment sem contar ou sem dar o devido valor às astronômicas manifestações públicas que o antecederam, sem as quais ele NUNCA teria acontecido. Ela fala mais das passeatas de 2013 do que dessas, que foram as maiores manifestações que o Brasil já teve. Ela fala timidamente dessas manifestações e ainda quando fala ou enfoca num segmento sem representatividade que eram os babacas pedindo intervenção militar, ou então corta das manifestações pra um plano de pessoas pobres testemunhando que melhoraram de vida depois do Lula. O que ela quer dizer com essa montagem? "Ele rouba, mas faz"?

Sem o povo na rua, podia o Cunha tramar com o Temer, com o Aécio, com o FHC, com o Moro, com o Pelé, com o Airton Senna, com a Anitta e com o dono da Havan que não ia sair impeachment nenhum. Depois de uma manifestação daquele tamanho, apenas congressistas petistas ou os que já tivessem decidido que aquele seria seu último mandato votariam contra o afastamento de Dilma. Ainda mais se lembrarmos que o apoio da "base aliada" foi comprado e não conquistado, e aí uma vez que os contra-cheques acabaram, não haveria mesmo mais nenhum motivo pra deputados e senadores salvarem Dilma e virarem as costas pras ruas, correndo o risco de assim encerrarem suas carreiras. Considero desonestidade intelectual do documentário "esquecer" de incluir inúmeros planos mostrando - sem distorções de edição ou editoriais - o inegável descontentamento popular com Dilma e o PT, causados pela pane financeira e o desmonte moral que eles promoveram (e promoveram porque QUISERAM, foi uma escolha, podiam sim ter seguido o caminho da luz).

Até teria mais coisas pra comentar (como por exemplo um plano da Dilma dizendo que não queria ser presidente mas mesmo assim topou, o que reforça minha tese antiga que diz que - assim como Ângela Maria e Cauby Peixoto - Dilma e Figueiredo são a mesma pessoa...) Mas vou parar por aqui, porque já falei bem mais do que o volume que planejava.

Em resumo, entendo que este é um documentário que deve ser visto, desde que se entenda que estamos vendo uma (válida) propaganda de uma narrativa específica.

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